segunda-feira, 30 de maio de 2011

Confissões de um velho reprodutor


           
           
           
           
A Sinhá correu a senzala e apartou as escrava que tava no "vicio", nas quadra da lua. Quando a quadra da lua tá certa, a "cria" é garantida. Era um rebanho de umas dez, no ponto pra tirar raça. Não era qualquer fazenda que tinha reprodutor nagô-mina, como eu. No rebanho tinha uma chamada Duca, do lombo bem feito, da anca lisa, de tetas que ia dar bom ubre, de umbigo bem curado, uns quarto que dava gosto. Andei no meio delas, negaceando, mas só via a Duca. Mas ela arrepiou, medrosa. Correu se esconder. Mas reprodutor é bicho paciencioso. Eu sabia que tinha um mês para repassar todas. De longe eu ouvia o choro dela, baixinho pra ninguém ouvir. Se a Sinhá ouvisse, o "bacalhau" comia no lombo. Fui chegando de mansinho, com fala macia, agradando. Eu era reprodutor que sabia tratar suas fêmea. O choro virou cochicho e, no fim da tarde, a Duca, negrinha de quinze pra dezesseis anos, já tava prenha.

Meu espanto vai aumentando à medida que a mente lúcida, a malícia e a inconsciência de João Antonio vão se revelando. Com meia dúzia de frases, ele traça o quadro de abjeção humana que eram as senzalas do Brasil imperial. Oitenta e quatro anos depois da libertação, João Antonio ainda raciocina como o animal que a escravidão o tornou. O pescador Chico afasta-se com expressão de incredulidade. As mulheres sorriem como se João Antonio caducasse. Ali, naquela praia, só eu sei que tudo é verdade, que homens podem ser animalizados pela escravidão. Ele também sabe, mas não tem consciência. Aos 122 anos, continua o reprodutor nagô-mina que enxertava escravas para que o patrão tivesse braços para o trabalho ou rebanho para vender.

- E se a escrava não temesse o "bacalhau", resistisse?
- Isto não acontecia. Não podia acontecer. Mas, e se acontecesse? Você pegava na "amarra"?
Seu olhar escravo, vindo ainda de 1888, examina-me como se eu fosse alguém nunca encontrado. Vejo-me jornalista que entrevista touro ou cavalo pastor.
- Nunca peguei na "amarra". Eu era muito cúmplice.
Sinto que não estou numa praia, mas num estábulo ou numa baia, com torrões de açúcar na palma da Mao. Minhas palavras ou gestos precisam ser raspadeiras que alisam e acariciam crinas e ancas. Minha voz também se toma cúmplice.
- Cúmplice, como, João?
- Homem é bicho perigoso, sabe maneirar. Eu ganhava elas, falava manso, alisava, dava coisa. Sabe como é.
- Dava o que?
- Reprodutor era bem tratado. Se não
tivesse sido bem alimentado, já tinha morrido há muito tempo. Ainda não estou aqui, com 122 anos no lombo? Eu tinha carne, leite, arroz - comia o que o patrão comia. Eu repartia com elas. Para as negas, era ate bom ter um reprodutor como eu. Dava carinho, comida. Tirava da boca para elas.
- E os escravos que não eram reprodutores, comiam o que?
- Angu.

Volta-se para mim, passando o dedo de unha amarela na testa, onde ruga é um sulco profundo. Seus olhinhos passam ligeiros sobre os seios das mulheres dos pescadores.
- Se a mulher ta na "ocasião", fica fogo sai, pisando brasa. Mulher e como porca, vaca, égua. Na "ocasião" dela, entrega mesmo. Feio ou velho, qualquer macho serve. E eu era um negro sarado nas ferramenta.
As mulheres dos pescadores afastam-se rindo. João olha-me de lado com um risinho casqueiro.
- Você não sentia pena das escravas?
João olha-me como se eu fosse alguém tão distante da escravidão, que não consegue entender o mundo das senzalas.
- Por que ia sentir? Nos tava lá para isso, para reproduzir. O fazendeiro precisava de negrinho pra levar na feira.

- O barão de Guaraciaba deixava descendentes dele serem vendidos em feiras?
- Não fui reprodutor na fazenda do meu avô. Saí de lá com dezessete anos: meu pai me deu pra dom Pedro II e fui morar em Petrópolis. Quando tinha 23 anos, dom Pedro II me presenteou ao barão do Rio Branco. Fui morar na Fazenda dos Correia, do barão do Rio Branco, também em Petrópolis. Foi lá que comecei o trabalho de reprodutor.
- Você disse que as escravas ficavam trancadas com você durante um mês. E depois?
- Depois que tavam enxertadas, iam trabalhar: umas na roça, outras na cozinha, em qualquer serviço.
- E você?
- O fazendeiro me mandava tomar um pouco de ar. Eles era branco, mas era bom.

A mulher do pescador, gorda, com seios enormes, debruça-se sobre a mesa de tábuas rústicas e olha fixamente João.
- Que vidão, hein, vovô João? Enquanto os outros davam duro na enxada, você levava as mulheres deles para cama.
- Mulher de quem? Ninguém tinha mulher. Era tudo do fazendeiro. Já viu touro ter vaca só sua? Ou cavalo? Era meu trabalho. Quando não tinha escrava para enxertar na fazenda do barão, ele me alugava ou emprestava para outra fazenda. Mas acho que eu era alugado.
- Por que?
- Quem dava negro de graça? E um negro como eu, de raça? Nunca soube quanto o barão cobrava, mas sei que cobrava por escrava enxertada. Os fazendeiro devia pagar bem porque sabiam que filho meu era nego de nação, de nação africana.
- As escravas dos outros fazendeiros eram levadas para a fazenda do barão?
- Nãaaao! Eu ia para a fazenda de quem me pagava. Quando chegava lá, já tava apartado dez, vinte escrava pra enxertar. Ficava dois meses, depois voltava pra fazenda do barão. Só na Cachoeirinha andei deixando uns catorze filho, mais ou menos. E na Água Limpa, Igapira, Santa Catarina, Samambaia, tanta fazenda que tive? Sei que naquela época eu fiz para mais de cem filho. Os fazendeiro ria à toa quando nascia um macho. Mas macho ou fêmea, ia tudo parar na feira.
- Você não sofria por seus filhos? João olha-me como se eu fosse incapaz de compreendê-lo:
- Sofrer por quê? As cria pertencia a eles. Não podia sentir nada. Algunzinho sempre chorava, mas o que se podia fazer? Meu trabalho era reproduzir. Quem vendia era o fazendeiro.
- O que acontecia se não emprenhasse as escravas?
- O senhor tem um cavalo que não presta. Vai dizer que não presta? Claro que não. As escrava que não pegava filho, eles punha com outro reprodutor. Tinha muitos, não era só eu, não. Se a escrava não ficava de barriga cheia, era vendida. Quem fica com vaca que não dá cria?
 - Mas trabalhavam.
- Precisava trabalhar e parir. Comigo era difícil bater falha. Fui bom reprodutor em todas as fazendas onde tive. Só dei produção boa, macho ou fêmea. Se a fêmea que nascia era nagô, a Sinhá ficava contente que só vendo.
- Por quê?
- Fêmea nagô é da perna grossa. O senhor sabe: nega dos quarto largo, perna grossa e bunduda, da boa cozinheira, ama-de-leite, serviço de casa.
- E se nascesse mina?
- Ai era o sinhô que ficava rindo para as paredes. Mina e da canela fina - sinal de bom trabalhador, o que há de melhor no cabo de uma enxada. Não estou com 122 anos e não limpo sozinho meu bananal? Não tenho medo de ninguém, não, no cabo de uma enxada. Agora, imagina quando eu era moço.

Vejo-me na estrada acompanhando João, quando foi me mostrar a roça onde trabalha, cultivando bananeiras na encosta de um morro. Ele ainda consegue sobreviver, vendendo bananas em Mauá. Como sua tapera no bananal caiu, João vive numa pequena casa de alvenaria inacabada, na praia de Mauá. A casa pertence a uma senhora de Magé, que trata de sua aposentadoria e é sua procuradora.
- Você nunca se casou, João?
- Eu só vivi entre mulher, para que casar! Depois, escravo não casa, reproduz. - E depois da libertação, quando não podia mais ser reprodutor?
- Quando veio a libertação eu tava com 38 anos, acostumado a viver daquele jeito. Na minha escravidão eu era homem amado. Fui na liberdade também. Depois da libertação eu tive treze mulher, tudo amigado. A ultima morreu faz nove meses. Tinha 31 anos.
- Você com 122 e ela com 31?
Em seu rosto há espanto, como se o tom de minha voz o tivesse ofendido.
- E por que não? O que cai na minha linha fica seguro como peixe bem fisgado.

De repente, os olhos miúdos e extremamente vivos brilham de maneira diferente. Sinto receio de dizer alguma coisa e afugentar o pensamento que começa a brotar em sua mente. Fico parado numa expectativa. ansiosa. João passa a Mao pelo rosto, ajeita a perna da calça, olha-me de lado e percebo que a lembrança - fruto da verdade ou da imaginação - toma conta de seus pensamentos. Continuo em silêncio, aparentemente observando a parede de reboque da pequena sala, onde ele mesmo cozinha peixes e alimentos que os pescadores lhe dão. No chão de terra batida, no lugar onde dorme, marcas de seu corpo. João pigarreia, tentando tornar a voz bem clara.
- Também tive filho com branca. Era filha de fazendeiro e chamava Raque1.
Filha de fazendeiro?
Dono da Fazenda Cavaru: seu Januário. Raquel era mais velha do que eu. Gostava de mim porque eu era um crioulo parecido. Era forte, bonito, bem aparelhado. Pois não era um reprodutor? Aconteceu na cozinha.
- Na cozinha?
- O fogão era meio inclinado. Eu trouxe a lenha rachada e ela tava lá, me esperando. Dei o que ela queria. Depois foi em outros lugar. A fazendeira descobriu e fomos parar no delegado. Mas o delegado sabia que eu era filho do barão de Guaraciaba e perguntou: "Quem deitou primeiro?" "Fui eu", respondeu Raque1. "Quantos anos tem?" Raquel confirmou: 23. Eu tinha dezoito. O delegado olhou seu Januário e sentenciou:' "Então, não posso fazer nada". Foi depois disso que meu pai me deu para dom Pedro II e fui morar em Petrópolis. Não peguei outra branca porque não achei. Nesta hora ia um homem sarado como eu pensa em castigo? E pra mim é tudo igual: branca ou negra leva um homem para o fogão.

É para lá que ele caminha cada vez que abre a boca: as enormes senzalas dos barões do império são seus castelos, onde, nas paredes, ficaram seus brasões com desenhos que lembram Pompéia - O sexo masculino com asas. Os enfeites de sua memória são correntes, gargalheiras de ferro. Os alimentos do passado - carne, leite, arroz - são sonhados na pequena sala onde não há nem mesmo folhinhas ou santos de parede. Os muros onde está preso são lisos e muito altos e não fornecem qualquer possibilidade de fuga. São como cercas de arame farpado em volta da placidez verde da baía de Guanabara, onde ele se vê solto como magnífico garanhão no meio de éguas fogosas. Dormindo como animal no chão de terra, ou trabalhando no bananal quente como fornalha, sonha apenas com sinhas e sinhôs, com escravas, com crias suas em feiras esperando para serem vendidas.
- Só tenho medo de uma coisa.
João acende o cigarro que lhe ofereço.
Solta a fumaça olhando o mar com expressão triste.
- Do que é que tem medo, João?
- Tenho filho espalhado no mundo, de escrava de Minas, Bahia, São Paulo, Pernambuco. Sei que sou homem que não pode meter a cara com qualquer mulher. Pode ser que seja neta minha. É só isso que me preocupa, quando vejo uma negra e sei que posso "traçar" ela. FIM


(1) João Antonio é filho da escrava Angelina Maria Rita da Conceição, de raça nagô-mina, e de um filho do barão de Guaraciaba, e nasceu na Fazenda da Glória, de propriedade do barão, em Campos, Estado do Rio. É por isso que João Antonio assina Guaraciaba, como todos os escravos que, filhos de fazendeiros, assinavam o nome de seus proprietários. O barão de Guaraciaba é o construtor da ponte de bronze que existe em Campos. Empobrecido com a libertação dos escravos, o barão vendeu suas propriedades para acabar de pagar a construção da ponte.

domingo, 15 de maio de 2011

Apresentação


Blog sobre a saudosa revista Realidade. Quem sabe um dia a editora Abril não a disponibilize integralmente na internet, como fez com a Veja e a Quatro Rodas. Enquanto isso não acontece, aprecie aqui algumas amostras dessa publicação. Boa leitura!

Realidade No 1